A Arca da Fraternidade: Ideia de um Deus Criador e a Verdadeira Paz

O tema proposto para este breve texto vem do pronunciamento do Papa Francisco durante o Encontro Inter-religioso em Abu Dhabi, em 04 de fevereiro. O Papa fez a menção à arca de Noé, trazendo a imagem e a ideia de uma “arca da fraternidade”. O subtema, “a ideia de um Deus criador e a verdadeira paz” nasce das ideias mestras do discurso do Santo Padre – quando recorre à imagem de uma única origem para a humanidade, razão primeira da paz e da fraternidade, assim, nosso breve texto pretende ater-se a esse discurso buscando na religião o contributo à paz que exorta o Papa Francisco.

Padre Abimael

            A mensagem do pontífice romano traz em seu conteúdo quase que um eco de todo o pontificado de Francisco até agora e que já estava presente no balcão da basílica de São Pedro quando da sua eleição: “Uma fraternidade universal”. Suas encíclicas, suas viagens, seus discursos, suas falas oficiais e não oficiais como Chefe de Estado têm apontado para essa fraternidade universal como superação de fronteiras e estabelecimento de pontes. Diante disto, ao ele dizer que foi a Abu Dhabi como “crente sedento de paz” se mostra a busca concreta da paz como uma constância em seu ministério petrino. A especificidade aqui é o reconhecimento do importante contributo das religiões para a construção da desejosa “fraternidade universal”.

            Deus está na origem da única família humana- esta frase de Francisco coloca em xeque a própria condição tradicional da identidade religiosa que é o “exclusivismo soteriológico”, isto é, o exclusivismo para a salvação, que se dá no auto entendimento de cada religião, que se vê como única possibilidade de salvação. Assim, na direção do Concílio Vaticano II, o Papa Francisco demonstra entender que como origem de todas as coisas, inclusive do homem e de suas expressões, como também da religião: Deus não criaria para condenar, mas para harmonizar. Daí a urgência do apelo a que a religião estabeleça pontes ao invés de muros.

            O estabelecimento de pontes como vocação universal da religião, como pretende o Papa, requer uma característica pouco comum no cotidiano religioso, ainda que esteja presente em documentos. Essa característica Francisco defende com maestria, algo que devemos aprender e aplicar no dia-a-dia, diz o Papa: “não se pode honrar o Criado sem salvaguardar a sacralidade de cada pessoa e de cada vida humana: cada um é igualmente precioso aos olhos de Deus”. Aqui, a ideia de fraternidade, sob uma única origem, afronta a xenofobia, a homofobia, o racismo, a intolerância religiosa, a intolerância política e todo tipo de discurso preconceituoso e discriminatório. Tocando precisamente de alerta a grupos católicos que alimentam tais práticas como “honra a Deus”.

            A Francisco é preciso a urgência de uma única condenação: “qualquer forma de violência”. Aqui podemos pensar o aborto – violência contra um indefeso; abusos sexuais, seja pelo clero ou outros agentes; violência contra a mulher; violência contra o imigrante-refugiado; violência contra o morador de rua; – violência contra as famílias, contra os jovens, contra presidiários… para Francisco nenhuma violência se justifica, tão pouco sustentada pelo discurso religioso, pois como diz ele: “em nome de Deus Criador, é preciso condenar, decididamente, qualquer forma de violência, porque seria uma grave profanação do Nome de Deus utilizá-Lo para justificar o ódio e a violência contra o irmão. Religiosamente, não há violência que se possa justificar”.

            Sabemos que cada confissão religiosa se pretende uma revelação particular de Deus, considerando que cada expressão seja única e definitiva. Tal auto compreensão pode fundar a violência religiosa, na face da intolerância, chegando ao extremo do proselitismo e do terrorismo. No entanto, aquilo que parece ser algo inerente à religião, Francisco entende como uma tentação, algo de que a religião pode se afastar, diz o pontífice: “A verdadeira religiosidade consiste em amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a si mesmo. Por isso, a conduta religiosa precisa ser continuamente purificada duma tentação frequente: considerar os outros como inimigos e adversários. Cada credo é chamado a superar o desnível entre amigos e inimigos, assumindo a perspectiva do Céu que abraça os homens sem privilégios nem discriminações”.

            Para a superar a tentação do adversário e do inimigo, o Papa Francisco recorre inicialmente à palavra alteridade, como “alma do diálogo”, acompanhada pela oração, considerando, com sinceridade, que o fingimento pode macular tanto o diálogo como a oração, isto é, a acolhida do outro, a vida de oração pode se pautar pelo fingimento, mas isso seria apenas um engano, um erro, de sorte que a acolhida da alteridade e o diálogo comecem por uma verdadeira prece pelo outro e todo outro, não somente pelo outro de meu grupo.

            A relação com a alteridade se revela para Francisco a condição do “conhecer-se a si mesmo”, isto é, “à famosa máxima antiga ‘conhece-te a ti mesmo’, devemos juntar ‘conhece o irmão’: a sua história, a sua cultura e a sua fé, porque sem o outro, não há verdadeiro conhecimento de si mesmo”. Assim, a alteridade é condição de autoconhecimento pessoal, e seguramente também de conhecimento para a própria tradição religiosa, pois “nada que seja humano” é estranho a Deus.

            Alteridade quer dizer diferente, outro que não eu, e não outro eu, como se chegou a pensar em algumas tradições filosóficas, de modo que a proposta de Francisco alarga extensamente a compreensão de outro, numa infinição contínua, trazendo ao crente o desafio ético da acolhida, da responsabilidade pelo outro, como superação de toda violência, sobretudo a violência religiosa. Aqui imaginemos alguns discursos de alguns católicos sobre a pessoa homossexual, o discurso de alguns líderes católicos sobre as religiões de matriz africana, os ensinamentos de alguns líderes católicos sobre as relações entre partidos políticos. Em muitos desses discursos a alteridade é deposta e se impõe a intolerância ao diferente, ao outro que seja radicalmente outro.

            Na acolhida à alteridade, considerando a vinculação da educação e da justiça, conclui-se que “educação e violência são inversamente proporcionais”, daí a contradição entre religião e corrida armamentista. A justiça e a educação constituem uma missão para a religião em vista da superação da violência, por sua vez, a promoção de armamentos vai em direção contrária e em nada coincide com a missão da religião, assim se expressa o Papa: “Uma convivência fraterna, fundada na educação e na justiça, e um desenvolvimento humano, construído sobre a inclusão acolhedora e sobre os direitos de todos, constituem sementes de paz, que as religiões são chamadas a fazer germinar. Cabe a elas neste delicado momento histórico, talvez como nunca antes, uma tarefa que não se pode adiar mais: contribuir ativamente para desmilitarizar o coração do homem. A corrida aos armamentos, o alargamento das respectivas zonas de influência, as políticas agressivas em detrimento dos outros nunca trarão estabilidade. A guerra nada mais pode criar senão miséria; as armas nada mais, senão morte!”.

            Diante do exposto sobre arma e educação-justiça, se entende o que seja fingimento religioso, isto é, não pode alguém servir-se da oração, da religião e promover a expansão de armamento, pois isto é prontamente fingimento. Isto seria para pessoas não religiosas e profundamente egoístas e individualistas, donde provém o danoso mal da violência. A religião, as pessoas religiosas deveriam fazer frente a isto, num contínuo favorecimento de políticas de superação real da violência.

            A modo de conclusão exorta o pontífice renovando sua radical oposição ao grande mal da guerra: “A fraternidade humana impõe-nos, a nós representantes das religiões, o dever de banir toda a nuance de aprovação da palavra guerra. Restituamo-la à sua miserável crueza. Estão sob os nossos olhos as suas consequências nefastas”.

            Por fim, este pequeno texto foi profundamente enxertado pela palavra do Papa Francisco, encerro sabendo do imenso desafio da hora presente, onde a alteridade é reduzida ao que deve ser banido, expurgado, extirpado, isso inclusive em meios cristãos, contudo, diziam que o jovem Francisco de Assis estava louco, ao assumir uma fraternidade integradora de toda a criação. Pois é, talvez o Francisco esteja louco ao propor a fraternidade universal frente aos muros e intolerâncias que molduram as relações em nosso mundo. Mas é isto, talvez ele esteja apenas louco, ou apenas certo. Talvez seja isso, a hora das religiões serem a arca da fraternidade, para salvar a humanidade da crueldade da auto referência, fonte de intolerância e violência; e com isso, mais uma vez “talvez”: talvez seja a hora das religiões se salvarem de si mesmas, apenas talvez.

Pe. Abimael F. do Nascimento, msc

Mestre em Teologia

Mestre em Filosofia

Doutorando em Filosofia pela UFC

Pároco da Paróquia Nossa Senhora do Sagrado Coração-Aerolândia.

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