A fome é a expressão de uma sociedade fracassada no seu projeto político. Eliminá-la exige uma boa dose justiça. Para elaborar meu pensamento proponho voltar a frase lema de nossa campanha “dai-lhes vós mesmo de comer” (Mt 14,16). Inicialmente está claro que os discípulos de Jesus estão diante de uma realidade concreta de fome. Entretanto, o mais interessante é a forma como a resposta é elaborada. A exortação indica uma obrigação de fazer algo imediatamente. Mas, um outro detalhe me chama atenção, consiste em observar que tal obrigação é dirigida ao coletivo, razão pela qual a tarefa de eliminar a fome é essencialmente uma ação pública, e por isso absolutamente política. Dito de outra forma, “dai-lhes vos mesmo de comer” é uma exigência evangélica a ser cumprida rapidamente porque significa a fraternidade em grau mais elevado.
Nesse sentido, a noção de justiça pode melhor orientar nossa reflexão. Isso porque precisamos lembrar que se a paz é a filha predileta da justiça, então podemos com alguma razão sustentar que sua inimiga original é a fome. Por que? Porque, somente é possível falar em sociedade pacificada onde não haja a presença da fome. Foi exatamente essa experiência vivenciada em atos dos apóstolos onde se ler: “[…] e entre eles não havia quem passasse fome porque dividiam tudo em comum[…]”. Como visto, as primeiras comunidades cristãs ao dar-se à exigência do evangelho mergulharam na radicalidade da fraternidade como elemento central na busca pela justa medida. Esta deve atuar como instrumento indivisível à mediação social, pois em uma sociedade mediada pela fraternidade a fome é superada pelas garantias dos mínimos sociais a partir da lógica da distribuição que a complexidade atual exige pensa-la, além dos mínimos econômicos, a dimensão dos mínimos ecológicos. Ou seja, a fome é uma vergonha somente superada com a justiça e seu caminho passa pela fraternidade.
Desta forma, cabe lembrar que a fome é originária na pobreza material criada por guerras, catástrofes climáticas, ou mal uso da economia. Compreender suas causas implica conhecer a sua arquitetura tornando possível revela-la como parte fundamental de um fenômeno social dinâmico, intenso e profundo. Logo, não é possível pensar a fome como um evento isolado, senão como elemento estrutural da pobreza material. Em tempo, a privação de alimento é prescindida pela desigualdade e pela exclusão social. O esforço aqui consiste elaborar uma síntese a compor a dinâmica social da pobreza cuja fase mais aguda ocorre com a precarização da oferta alimentar, momento em que a ausência da fraternidade atinge seu grau mais elevado ameaçando profundamente a liberdade coletiva e a dignidade individual. Esta etapa, chamemos de fome.
A fome como debate público sempre foi negligenciada. Nunca faltou alguém com visão reducionista para dizer: “sempre houve fome no mundo”. É bem verdade que uma rápida consulta na história confirma está informação. Contudo, ao se aprofundar no assunto qualquer curioso perceberá que a fome sempre foi acompanhada por um profundo processo de injustiça social. No livro “A Origem do Sofrimento do Pobre” Luiz Alexandre Rossi apresenta uma rica discussão sobre o tema e vai sustentar que a origem do empobrecido se constituiu na forte opressão fiscal absorvida pelos povos antigos. Ao seu dizer: “o tributo era como o império retirava parte da vida do pobre.”
Um salto na história da pobreza nos coloca no povoado de Assis, onde um jovem revolucionário questionou como àquela sociedade tratava seus pobres. Segundo os registros apontados por Michael Mollat em “Os Pobres na Idade Média” foi Francisco de Assis quem primeiro questionou o aproveitamento da fome alheia para pseudas santificações e passou a tratar o assunto como uma questão pública e de responsabilidade coletiva. Esta mensagem teve o poder de questionar ações meramente assistencialistas, de tal forma a reescrever a funcionalidade do enfrentamento a fome no campo do status político de objeto público.
Atualmente, enfrentar a fome significa abrir diálogo amplo sobre fraternidade. Na sociedade moderna, isto significa se apropriar do conceito da democracia cujo os efeitos práticos se inserem no campo da cidadania. Sem a democracia no horizonte a economia perde seu sentido inicial de cuidar das pessoas, assim como faziam os apóstolos das primeiras comunidades cristãs. O resultado de uma economia adoecida pela ausência de cidadania é uma sociedade sem fraternidade. Nesse cenário, a fome assume um método a obrigar o famélico a agir muito mais por seus extintos do que propriamente pela capacidade fundamental da racionalidade. Desta forma, em uma sociedade composta por pessoas famintas a mediação social rompe com as vias da cidadania e por consequência rasga com qualquer perspectiva de democracia. Nessa nova dinâmica, os conflitos passam a ser inevitáveis e a civilização virá um caos.
Portanto, uma questão central se insere: como fazer para evitar o rompimento dos vínculos sociais que estão na origem da fome?
O primeiro passo consiste em garantir segurança alimentar como um direito básico de todos os indivíduos. No caso brasileiro esse tipo de segurança vai ganhar aspectos mais amplos de sociabilidade até ser definida em lei como “a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimento de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades”.
Essencialmente hoje, para cumprir ao preceito “dai-lhes vós mesmo de comer” é preciso realizar ações concretas e isso exige abandonar o modelo econômico baseado na competição e migrar para a economia do cuidado, onde não é o dinheiro, mas a fraternidade a principal mediação social. Aqui se insere dois aspectos importantes: de um lado, a responsabilidade social com os pobres; e do outro a exigência primordial com a causa ecológica como bem sustenta o Papa Francisco na Encíclica Laudato Si. Dito de outro modo, é preciso parar urgentemente com a primazia do capital em relação a humanidade e a ecologia. Seria preciso falar em economia ecológica e não em economia do desenvolvimento, ou do crescimento infinito.
Nessa direção, chamo atenção ao documento assinado na cidade de Assis em setembro passado, como resultado dos esforços de jovens economistas reunidos para debater a Economia de Francisco – EoF. Com um sugestivo nome “Declaração das Aldeias” o texto é categórico ao sustentar os princípios que apontam para uma mudança radical da economia. Entre elas está uma profunda reorientação da política para a felicidade humana e não para o lucro. A sustentação de um humanismo integral que significa o respeito mútuo entre economia e ecologia. O documento apela para a observar a dimensão do trabalho e do cuidado e suas implicações na modernidade e na condição humana. Na sequência, o texto vai exortar a comunidade cristã a assumir a tarefa de rearticular a função do lucro que deve servir a superação do medo de uma vida indigna, até concretamente ressignificar o papel da agricultura e das finanças como elementos da justiça e superação das desigualdades. Como?
Na prática, o caminho mais curto seria rever o papel das tecnologias e a responsabilidade dos governos e do mercado sobre a gestão da economia e sua sustentabilidade. Isso significa considerar os avanços das tecnologias socias que já possibilitam aproximação direta entre os pequenos produtores e o consumidor final. Uma das maiores pesquisadoras sobre economia solidária, a cearense Risoneide Amorim, de notável saber prático, indica que o caminho à nova economia passa essencialmente pelos pequenos. Segundo sua visão é preciso fortalecer a articulação entre as inúmeras redes de produção solidária espalhadas pelo país. Outro importante ponto, segundo a pesquisadora consiste em fortalecer as questões financeiras pela lógica dos bancos comunitários e moedas sociais.
No campo da política, os governos precisam fazer suas escolhas pelos mais vulneráveis. É preciso colocar os ricos no imposto de renda e os pobres no orçamento. Isso significa mais distribuição de renda, inicialmente pela geração de emprego afetada pelas péssimas políticas cambiais. Nesse aspecto é preciso rever a política de juros a prejudicar as pequenas economias. Para ser possível uma repactuação social é necessária repensar uma sólida distribuição renda, quiçá a implantação de um programa de renda básica. Como fazer isso? A resposta é trabalhosa, porém simples, e passo a listar.
Primeiro, não há como não apelar as reformas necessárias enfrentando incialmente a questão tributária. Segundo: é preciso regressar e desfazer a maldosa reforma do trabalho que a pretexto da modernização vazia retirou direitos e sucumbiu direitos. Em terceiro, é preciso repensar a reforma da previdência com foi posta, pois esta teve como resultado a retirada dos direitos às aposentadorias de forma digna de uma geração inteira. Quarto! É preciso revogar, em caráter de urgência, a famigerada reforma do teto dos gastos, porque na prática ela serviu apenas para pagar juros de uma dívida pública não auditada.
Para tomar emprestada a famosa expressão de Darcy Ribeiro. Esses elementos estão a transformar a economia brasileira em um verdadeiro “moinho de gastar gente” Para concluir gostaria de relembrar um trecho da carta aos Romanos 5,5 de modo especial onde se ler: “a esperança nunca nos decepciona” por isso é oportuno regressar as palavras do Papa Francisco aos jovens em Assis: Para o Papa mudar de economia exige “olhar o mundo com os olhos do pobre”. Uma boa iniciativa a esse apelo consiste em restabelecer ligação entre trabalho e trabalhadores, porque mudar o mundo da economia é pensá-lo “com o coração, com a cabeça, mas principalmente com as mãos”. Portanto, é preciso pensar, agir e não esperar. Ou seja, “dar-lhes vós mesmo de comer” é superar a fome estrutural que assola nosso povo. É perder o medo de falar e fazer o óbvio, razão pela qual precisamos recriar a uma economia que combata a fome até sermos capazes de dizer como Jesus e Francisco de Assis: “bem-aventurados são os pobres”.
Aqui estão as razões pelas quais a fraternidade só é possível com uma sociedade livre da fome.
*Professor Rafael dos Santos da Silva, Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra e docente da Universidade Federal do Ceará (UFC).