O editorial do O POVO de 8 de maio traz interessante conteúdo sob o título Linchamentos como reflexo do desordenamento social, a partir de uma caso que tem o caráter emblemático na medida em que retrata uma mentalidade, uma cultura que toma conta da sociedade brasileira. O caso ficou conhecido nacionalmente quando uma senhora foi confundida com suposta praticante de rituais de magia negra que sequestraria e sacrificaria crianças (cf. editorial). Mais à frente o mesmo editorial afirma; “tentar fazer justiça com as próprias mãos tornou-se um fenômeno corriqueiro no Brasil de hoje”.
Ainda quando redigia esta reflexão, a mídia noticia um linchamento, com espancamento até a morte, de um acusado de roubar um celular. Fato ocorrido aqui em Fortaleza no bairro Vila Velha no dia 30 de maio. Estes casos e muitos outros poderiam ser multiplicados neste espaço. O que chama a atenção é que, ao que tudo indica, isto invadiu o cotidiano das relações humanas, invadindo a família, o namoro, o bairro e outras esferas dos relacionamentos primários, como algo que está internalizado na vida das pessoas e que nada exterior às mesmas é capaz de pensar uma outra forma de relacionamento, prevalecendo a mentalidade de vingança.
Penso que a partir dos anos 70, logo após a conquista da Copa do Mundo pelo Brasil no México, penetrou no tecido da sociedade, talvez, o patamar a partir do qual se desenvolveu este tipo de reação que se entranhou como um jeito de ser: falo da conhecida Lei do Gérson, protagonizada por este grande craque de futebol quando fez a propaganda de uma marca de cigarro. Ela simboliza o querer levar vantagem em tudo, não se importando com a ética.
Permitam-me não entrar mais a fundo em outras análises e contribuições de outras disciplinas, em função do espaço que disponho, mas prefiro fazer o contraponto deste tipo de mentalidade com outra possibilidade: a revolução da ternura. Fico a me perguntar: será se nós cristãos ainda temos algo a oferecer à sociedade como testemunho, evidentemente sem ingenuidade e com este pressuposto buscar alternativas para uma sociedade em que possa prevalecer valores como a ternura, a misericórdia, o perdão? O que estamos fazendo da proposta de Jesus Cristo que ficou como legado para nós, já que ainda somos a maioria na sociedade? Podemos ou não influenciar, não mais como no período da cristandade, mas como a presença de uma Igreja no mundo que possa ser vista como sacramento da ternura de Deus, através de uma catequese não só doutrinal mas existencial, já que atinge idades básicas para a formação da consciência, de atitudes (crianças, adolescentes e jovens)?
Como fica a devoção popular mariana? Não precisaria ela ser trabalhada também no aspecto dos valores que Maria encarna, e não só na perspectiva de milagres, embora que saibamos que é um grande desafio? Multiplicam-se os terços da misericórdia nas emissoras e grandes eventos, sem uma alusão à misericórdia, às respostas violentas da sociedade. O papa Francisco, na exortação apostólica A alegria do evangelho, afirmou e fez um convite: o evangelho convida-nos sempre a abraçar o risco do encontro com o rosto do outro, com sua presença física que interpela, com os seus sofrimentos e suas reivindicações, com sua alegria contagiosa permanecendo lado a lado. A verdadeira fé no Filho de Deus feito carne é inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do serviço, da reconciliação com a carne dos outros. Na sua encarnação, o filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura (destaque meu). (EG n. 88).
Com esta breve reflexão não é meu objetivo deslocar para a Igreja e os cristãos os desafios que a sociedade enfrenta em nível macro e micro, mas fazer refletir se é reservado ou não para nós cristãos um papel histórico neste aspecto, já que estamos sendo conduzidos à barbárie. Nós cristãos somos chamados a construirmos a “escola” da ternura.
Pe. Almir Magalhães, Diretor Geral e Professor de Teologia da Faculdade Católica de Fortaleza – FCF.
Fonte: Publicado no Jornal O Povo (Espiritualidade), Fortaleza, 8 de junho de 2014.