MARIA E O ANO SANTO DA MISERICÓRDIA: O QUE ISSO IMPLICA?
O papa Francisco ao convocar o Ano Santo da Misericórdia apresenta diversos elementos significativos: as ações de Deus para com o povo da primeira Aliança, a ação de Deus em Jesus, como reveladora da misericórdia; indica também sugestões para se viver bem este Ano Santo. Contudo, a mim o que se apresenta bastante caro é o fato da proposta do papa Francisco estar mergulhada numa interpretação da misericórdia profundamente ligada às obras de misericórdia, tanto corporais quanto espirituais, isso apresenta o conceito de misericórdia muito próximo ao de justiça e caridade cristãs, antes que confundido com um sentimento, e nesta aproximação poderíamos aprofundar o motivo pelo qual Maria seja aquela em que “tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne”, por isso, “mãe da misericórdia”. Com a abertura do Ano Santo na festa da Imaculada Conceição de Maria, o papa claramente a apresenta como aquela que experimentou a imensidão da misericórdia de Deus, portanto, faz-se plausível averiguar o porquê aquela que foi preservada do pecado experimentou a misericórdia.
O papa Francisco evoca a misericórdia não somente como perdão dos pecados, como um dom do coração de Deus, mas amplia o conceito com a imagem de Mt 25, de onde provêm as obras de misericórdia: dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede…, diz o papa ‘abramos os nossos olhos para ver as misérias do mundo, as feridas de tantos irmãos e irmãs privados da própria dignidade e sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito de ajuda”. A misericórdia, neste sentido, é um movimento de deslocamento da indiferença ao envolvimento com os que estão privados da própria dignidade. Ela não perde a dimensão de perdão e bom conselho, mas exige uma experiência samaritana de envolvimento com a dor do outro, daquele que sofre e, em especial, daquele que não tem forças nem mesmo para gritar.
A partir de textos como do Bom Samaritano, e da mulher pecadora (Lc 10,30-37; Jo 8,1-11) vê-se que a misericórdia de Deus se expressa como um envolvimento com aquele que sofre, não por ele ser bom ou mal, mas em virtude de seu sofrimento. O sofrimento é o elemento que movimenta o olhar de Deus à miséria humana, isso já havia acontecido no Êxodo, na passagem da sarça ardente: “eu vi a dor do meu povo, seu clamor chegou aos meus ouvidos e desci para libertá-lo” (Ex 3,7); não é o merecimento do ser humano que movimenta o olhar misericordioso de Deus, mas o seu sofrimento; Deus sabe que no pecado não há vida, não há dignidade, por isso ele é perdão, em virtude do sofrimento, da opressão do pecado, mas Deus vai ainda mais longe, a sua misericórdia se expressa especialmente como a voz daqueles que não têm voz. Sua opção pelo caído à beira da estrada, pela mulher pecadora ou pelo povo da primeira aliança não é porque eles eram bons, mas porque estavam indefesos, não tinham voz, e diante disto, a misericórdia de Deus se impõe como uma voz que rompe a indiferença. Ele faz o mesmo com cada indefeso, ainda que seja pecador.
Poderíamos nos perguntar onde entra Maria santíssima nesta história. Primeiro ela foi preservada do pecado, como dádiva da misericórdia de Deus, depois, ela fazia parte de um povo oprimido e o seu canto do magnificat é uma expressão de quem reconhece que Deus lhe foi misericordioso, não somente ao individual, mas como povo, Deus foi misericordioso com o povo de Israel, com a humanidade ao nos agraciar com a encarnação do verbo. Assim, Maria é a primeira a experimentar a misericórdia do Verbo de Deus, que é Deus mesmo.
O CÂNTICO DE MARIA E A MISERICÓRDIA
No canto do Magnificat o evangelista Lucas coloca em Maria a expressão: oti epeblephen epi tapeinosin ten doules auto; que algumas traduções trazem como: ‘olhou para a humildade de sua serva’. Contudo, o termo tapeinosin pode também ser traduzido por “humilhação”, isto quer dizer que a tradução poderia ser: ‘olhou para a humilhação (condição de humilhação) de sua serva’. Maria vivia em um contexto de humilhação da mulher, e humilhação de um povo, que vivia sob o peso de um império e de uma prática religiosa tomada por preceitos excludentes, por isso o seu cântico é uma proclamação de que Deus é santo e misericordioso (Lc 1,50) e a partir daí há uma reorganização da ordem: retira do lugar os de coração orgulhoso (Lc 1,50-53) para saciar os famintos e humilhados. É uma inversão que acontece porque Deus é Santo, isto é, não se mistura com os nossos pecados e porque Deus é misericordioso, volta o seu olhar para a miséria humana; não de forma meramente individual, mas como povo (Lc 1,54), como nação chamada a ser sinal do Reino definitivo.
O evangelho segundo Lucas é reconhecido pela pesquisa bíblica como o evangelho onde as mulheres encontram um lugar especial no seguimento de Jesus e também como o evangelho da misericórdia. Poder-se-ia, pois dizer que a referência a Maria, a mãe o Senhor, já contempla estas duas linhas mestras do referido evangelista.
Maria é uma mulher que experimentou a misericórdia de Deus ao lhe conceder a dignidade de ser a mãe do Salvador, de ser a “cheia de graça”; depois experimenta esta misericórdia por ser mulher, em um mundo onde a mulher não tinha voz. Pois a misericórdia que se exprime como perdão dos pecados, também se exprime como auxílio de Deus, ação de Deus pelos que sofrem. A ação de Deus em Maria estende-se a todos os indefesos da história, tal graça é inaugurada no êxodo e plenificada na encarnação do Verbo; naqueles dias os pobres, os indefesos, entre estes as mulheres, se achegam a Jesus exatamente por encontrarem nele um novo olhar, uma misericórdia que os socorria e proclamava a dignidade de cada um. Ora, a mulher, um grupo marginalizado pela cultura da época, encontra em Jesus uma referência de superação dessa marginalização.
A cultura da época prescrevia a mulher como ritualmente impura (Lv 15) e por tal estava excluída do culto a Deus; “ao casar-se, a mulher judia saída da própria família e passava, muitas vezes sem ser consultada, da autoridade do pai para a do marido […] por isso o chamava ba`ali, “meu senhor” (Pagola, Jesus aproximação histórica, p. 257.). No século II o Rabi Jehuda propõe uma oração que expressa bem o lugar da mulher dentro dessa visão de mundo: “louvado seja Aquele que não me criou como pagão; louvado Aquele que não me criou como mulher; louvado seja Aquele que não me criou como ignorante” (in Lohser, Contexto ambiente do Novo Testamento, p. 139.). Essa louvação acontece em referência à aliança e ao culto, os três tipos expostos não tinham acesso nem à aliança e nem ao culto.
Aquela que não podia se apresentar em tribunais, que não podia sair à rua sem estar em companhia do seu senhor (esposo) e que pela impureza não podia participar efetivamente do culto, não podia aprender a Torá; agora, uma mulher é chamada a ser a mãe do salvador. Isso acontece de uma forma inusitada, pois é uma mulher pobre de Nazaré da Galiléia, e por mais que a pesquisa bíblica diga que próximo à Nazaré estava uma estrada romana e que por isso seria um povoado com boas potencialidades para o crescimento humano, Maria era só uma marginalizada, tapeinosin, mais uma humilhada; contudo, pela encarnação do Verbo, inaugura-se nela, um novo tempo, um novo relacionamento não só com a mulher, mas com todos os humilhados da história, por isso Lucas no cântico expõe para todos, aquilo que Maria mesma experimentou, “a ação transformadora de Deus nas relações sociais” (Murad, Maria toda de Deus e tão humana, p. 53). O que poderíamos também chamar de a ação misericordiosa de Deus.
O papa Francisco ao propor que neste Ano Santo, que a Igreja sinta-se chamada a cuidar das feridas da humanidade, “aliviá-las com o óleo da consolação, a enfaixá-las com a misericórdia, tratá-las com a solidariedade e atenção devidas” (Misericordiae Vultus, p. 21-22), está nos convidando a agir segundo o coração de Deus, que é misericordioso, que olha como estamos curvados sob o pecado e como há humilhação na vida de tantos e tantas, pelo que Deus mesmo age com perdão e socorro aos necessitados, também os que crêem são chamados a serem “misericordiosos como o Pai”.
O cântico de Maria é esse hino da misericórdia de Deus, que perdoa os pecados e estabelece a dignidade de todos os seus filhos e filhas; o cântico de Maria vê “as ações de Deus como parte de um processo duradouro de deposição de expectativas humanas orgulhosas e exaltação dos humildes [humilhados]” (Bergant, Karris. Comentário Bíblico III, p. 77).
Considerações finais
A misericórdia de Deus se volta como perdão, como remissão do pecado pelo sacrifício de Cristo, continuado de forma sacramental na Igreja, mas também a misericórdia se revela como socorro, como voltar o coração à situação de sofrimento e humilhação das criaturas de Deus. É uma justiça que ultrapassa as leis humanas. A misericórdia de Deus não se oferece a nós porque somos bons, mas porque o sofrimento nos tira a dignidade, seja vinda do pecado individual ou das injustiças sociais. Maria é o modelo de quem experimentou a misericórdia como erguimento da dignidade, seja por ser preservada do pecado, seja por ter sido retirada da humilhação social e religiosa.
O Ano Santo da Misericórdia seja esse tempo de conversão e perdão e de buscar uma justiça que ultrapasse a justiça humana e chegue a este erguimento dos filhos e filhas de Deus.
Pe. Abimael Nascimento, msc
Mestre em Teologia Sistemática
Uma resposta
quando inicia, e quando termina o ano da misericórdia.