Padre Geovane Saraiva*
Dom Helder Câmara, impoluta figura humana, procurou edificar a casa de Deus, isto é, a Igreja, tendo como alicerce sólido o bem e a justiça, não cedendo às ciladas dos injustos e poderosos, dizendo: “Ai da estrada que, em lugar de facilitar a caminhada, prendesse a si quem quisesse atravessá-la; papel da estrada, como é o nosso, é ajudar a caminhar e não parar, a seguir”. Consagrado sacerdote, com as palavras de Deus em sua boca, andou pela verdadeira estrada real, seguro e consciente da construção do reino de Deus, que é o reino da verdade e da vida, da santidade e da graça, da justiça, do amor e da paz.
Nada mais justo do que a antiga Estrada Real ou caminho imperial ter sida transformada em Avenida Dom Helder Câmara; também chamada caminho dos Jesuítas ou caminho das Minas, a qual ligava o município da Corte a Sepetiba, passando pela entrada da Fazenda Imperial de Santa Cruz, a partir do decreto do então prefeito da cidade do Rio de janeiro, Luis Paulo Conde (1997/2001). A antiga Avenida Suburbana é um dos principais eixos da Zona Norte do Rio de Janeiro. Com aproximadamente onze quilômetros, ligando o bairro de Benfica ao de Cascadura, cortando, além destes, os bairros do Jacarezinho, Maria da Graça, Del Castilho, Cachambi, Engenho de Dentro, Pilares, Abolição, Piedade e Quintino Bocaiúva.
Rendamos graças ao bom Deus, ao perceber a importância desta estrada real, batizada com o nome Dom Helder Câmara, o pastor que lutou com todas as forças, pelo anúncio transformador e consequente de instaurar o reino de Deus, no inefável desejo de submeter ao poder supremo toda criatura humana. Agora, por ocasião do seu aniversário de nascimento (07/02/1909-1999), guardemos no íntimo do coração a mensagem de otimismo e esperança, deixada por Dom Helder Câmara, o artesão da paz e cidadão do mundo, o bispo brasileiro mais influente no Concílio Vaticano II, ao abrir o caminho para a renovação, revestido da veste de sua mais profunda e autêntica coerência em favor dos pobres: “Se não engano, nós, os homens da Igreja, deveríamos realizar dentro da Igreja as mudanças que exigimos da sociedade”.
Como é maravilhoso recordar a vida do idealizador e fundador (juntamente com outros religiosos) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), sem jamais esquecer sua grande empreitada na defesa dos direitos humanos durante o regime militar brasileiro. Anunciava a palavra de Deus, na fidelidade ao seu projeto de amor, sonhando com uma Igreja caracterizada pelo despojamento e simplicidade, ao mesmo tempo, pafífica e voltada para os empobrecidos. Por sua atuação, recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais. Foi o único brasileiro indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel da paz. Foi ele quem afirmou: “O Espírito de Deus envia sonhos ao homem! Não sonhos enganosos, alienados e alienantes. Envia sonhos, belos sonhos que, amanhã, se transformem em realidade”.
Ele foi indizível e inexprimivelmente superior à realidade humana, a ponto de exprimir com extraordinária paixão e numa tonalidade poética que Deus é amor: “Fomos nós, as tuas criaturas que inventamos teu nome!? O nome não é, não deve ser um rótulo colado sobre as pessoas e sobre as coisas… O nome vem de dentro das coisas e pessoas, e não deve ser falso… Tem que exprimir o mais íntimo do íntimo, a própria razão de ser e existir da coisa ou da pessoa nomeada… Teu nome é e só podia ser amor”.
Quando assumiu a Arquidiocese de Olinda e Recife, em abril de 1964, afirmou: “Ninguém se escandalize quando me vir ao lado de criaturas humanas tidas como indignas e pecadoras (…); quem estiver sofrendo, no corpo ou na alma; quem, pobre ou rico, estiver desesperado, terá lugar especial no coração do bispo”. Dom Helder além de deixar uma gigantesca obra escrita, com grande sabedoria soube unir, numa síntese raríssima e feliz, o místico e o homem da ação, que contemplava e escrevia ao mesmo tempo durante as madrugadas e agia pela manhã, tarde e noite. Foi um articulador da melhor qualidade; dotado de uma fé clamorosa, de uma enorme capacidade de comunicação, força e convicção inabaláveis, que saía de dentro do peito magro, daquele homem baixo e franzino na estatura, que mais parecia um retirante de Portinari.
Profeta dos pobres, artesão da paz, cidadão do mundo, o homem dos grandes sonhos e das grandes utopias ele o foi, a sinalizar uma verdadeira conversão, nas mudanças dos costumes, no sentido de uma melhor compreensão da Igreja, na busca de sua renovação, do seu rejuvenescimento – ao verdadeiro “aggiornamento”, ao mesmo tempo, em que devia anunciar a pessoa de Jesus Cristo, diante do clamor dos empobrecidos, dos “sem voz e sem vez”. O grande ardor e entusiasmo desse homem, em todo seu trabalho bem articulado, no amor pela Igreja pobre e servidora, nunca podemos nem negar e nem esquecer as palavras do teólogo José Comblin: “Sou daqueles que tem a convicção de que os escritos de Dom Helder ainda serão fonte de inspiração na América Latina, daqui a mil anos”.
*Escritor, blogueiro, colunista, vice-presidente da Previdência Sacerdotal e Pároco de Santo Afonso, Parquelândia, Fortaleza-CE – [email protected]