…E ninguém sabia se eras Francisco
ou se Cristo eras…
É um dado histórico inegável que Francisco de Assis tenha sido personagem capaz de fascinar muitos dos seus contemporâneos e de levá-los de volta às exigências radicais do Evangelho. Também é igualmente certo que seu fascínio tenha se dilatado ao longo dos séculos, para além da Igreja católica e de todas as barreiras confessionais, às vezes até perdendo o significado mais profundo da mensagem desse jovem cristão de Assis.
E como não considerar extremamente positivo que alguns elementos da sua vida e pregação tenham inspirado – mais ou menos devidamente – movimentos ecológicos e pacifistas de todas as cores. Enfim, acho até por demais justo que Francisco de Assis tenha sido apontado como uma das figuras mais eminentes do milênio passado.
Todavia, o que mais surpreende é que esse fascínio evangélico perdure genuinamente quando se retorna à vida concreta de Francisco, ao seu modo de olhar a Igreja e o mundo de então e de agir para a conversão de ambos sobre as pegadas do Crucificado.
É por essa razão que faço questão de esquecer, por hoje, a ecologia, o meio ambiente, os animais e as plantas, mesmo convencido que toda a criação respira o sopro do criador e que o cuidado para com ela é um imperativo para todos. Chora e padece a natureza pelo descaso humano; choram e padecem duras penas multidões de seres humanos, filhos e filhas do bom Deus.
Por vezes chego até a desconfiar de tanta ternura e compaixão dispensada às plantas e aos bichos enquanto menos comoção e cuidado são dispensados aos bilhões de criaturas humanas largadas ao deus-dará. Os pobres foram até batizados com o pomposo nome de “hipossuficientes”. Talvez para torná-los ainda mais invisíveis e removê-los de nossas consciências. Assim sendo, menos problemas para nós.
Penso então em Francisco, o “poverello di Assisi” que tanto pediu a Deus a sorte de experimentar em suas carnes a mesma dor e o mesmo sofrimento que Jesus provou na cruz, até ficar abençoado com as marcas dos estigmas. Masoquismo? Desprezo pelo corpo? Sempre encontrarão justificativas para safar-se do sofrimento e da misericórdia aqueles que nada enxergam além das reclamações do seu próprio corpo.
Francisco percebeu um dia que para “pertencer ao Cristo pobre” não havia outro caminho a não ser o total despojamento de tudo aquilo que, até então, era a única razão de sua vida de luxuosas regalias e de privilégios. O emblemático episódio de se despir diante do pai em praça pública, foi só o início do longo e mais difícil processo de despojamento que, muito além da nudez do corpo, alcança as raízes das vontades e das paixões humanas.
Rico só do amor do Pai, igual ao Mestre, Francisco tem como oferecer amor verdadeiro à toda a criação. A partir daí a “sensibilidade” deixa de ser mera emoção epidérmica e se torna misericórdia: virtude teologal urgente e indispensável para este novo milênio.
Virtude teologal bem retratada no abraço de Francisco ao irmão leproso; virtude feita atitude no “bom samaritano” que cuida das feridas do homem caído à beira da estrada; no cuidado e na alegria do Pastor bom que carrega nas costas a ovelha machucada; e, por que não, do próprio Jeová que, não aguentando mais o grito do seu povo oprimido, decidiu tomar partido por ele.
Quanto sabor de profecia, hoje, têm para nós o testemunho e as palavras de Francisco, bispo de Roma: “Eu vejo claramente que a coisa que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar feridas e aquecer os corações dos fiéis, a proximidade. Eu vejo a Igreja como um hospital de campo depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de todo o resto. Curar as feridas, curar as feridas… E é necessário começar de baixo».
Padre Marco Passerini é da Congregação dos Missionários Combonianos e coordenador da Pastoral Carcerária Regional Nordeste I