O que move as Comunidades Eclesiais de Base hoje? Há espaço para o caminhar das CEBs dentro do momento atual da Igreja? São algumas dessas questões que a Irmã Teolide Maria Trevisan e o Padre José Marins tratam nesta entrevista concedida à ADITAL no começo de janeiro. Na ocasião, os dois participaram das reuniões que discutem o 13º Intereclesial das CEBs, previsto para acontecer em janeiro de 2014, na cidade do Crato, no Estado do Ceará.
Nascida em Santa Maria (RS), Irmã Teolide está há 41 anos se dedicando ao serviço com as CEBs. Já o Padre José Marins, da arquidiocese de Botucatu (SP), atua há mais de 41 anos nas igrejas na América Latina, na Ásia, nos Estados Unidos, na Europa, no trabalho com as Comunidades.
A entrevista é de Padre Ermano Allegri, diretor da ADITAL.
Adital – Como vocês avaliam o momento que a Igreja está vivendo? Há espaço para as CEBs nesse momento?
José Marins – É um momento de crise, mas como toda crise também é um momento de oportunidade. A Igreja está colocada no desafio do Vaticano II, que é o desafio da primeira comunidade cristã: muita coisa que nós tínhamos por certo, nós precisamos revisar; e essa é a grande oportunidade, que ao revisar coisas que foram boas no outro século, nós encontramos uma maneira de ser criativos no nosso tempo. O Espírito Santo está tão vivo hoje como esteve vivo em todas as épocas da Igreja.
Teolide Maria Trevisan- Realmente o caminhar das comunidades disse que elas são uma alternativa para essa revisão e para criar um processo de Igreja onde os leigos são mais sujeitos, não só de participar da vida da Igreja, mas em fundar e dar qualidade à Igreja. Então as CEBs é um espaço, é uma resposta e a Igreja tenta recomeçar a superar essa crise a partir do seu nível de base, do fundamento.
Adital- A Comunidade de Base tem lugar hoje na Igreja?
José Marins – Eu colocaria a pergunta de outro modo: a Igreja Católica tem hoje uma base respeitável e efetiva no mundo contemporâneo ou ela está trabalhando com um nível paroquial, que não é um nível de base? Então, se a Igreja Católica tem oportunidade de estar na história a sua base tem que estar na história, ela é sempre oportuna. A questão fundamental então é outra, é o modelo eclesial. Se a Igreja hoje está desenvolvendo um modelo eclesial que não chega realmente ao povo de hoje, é a dimensão missionária da Igreja que está em desafio e a resposta é que hoje as comunidades estão representando a presença da Igreja naquela área onde a Igreja historicamente não está chegando.
Adital – Quando podemos dizer que numa paróquia ou diocese existem de fato Comunidades Eclesiais de Base, o que é característico delas?
Teolide Maria Trevisan- Eu diria que quando realmente aceita criar essa nova instância, em estar mais dentro da vida e da cotidianidade do povo. É fazer voltar a Igreja ao tamanho do povo. Então essa é uma dimensão. A segunda dimensão é quando ela coloca todo o seu caminhar no espírito das comunidades. Então mesmo as pessoas que não entram numa experiência concreta de comunidade podem estar vivendo aquelas prioridades, aquele modo de entender-se Igreja, de ler a palavra, de estar na vida, de viver a relação de irmãos na fé, de realmente ser corresponsável no caminhar da Igreja. Diria que são estas as grandes linhas que a gente pode colocar para dizer que realmente uma Igreja está nos processos das Comunidades. Então a gente encontra hoje paróquias com comunidades e paróquias de comunidades. Esse “de comunidades” é mais sonho que realidade. Nós temos hoje paróquias que têm algumas comunidades.
José Marins – É mais fácil, às vezes, começar respondendo pelo negativo, o que não é Comunidade de Base: elas não são um método, as CEBs não são um movimento, não é uma organização, não é um projeto, é a própria Igreja que volta ao seu modelo histórico, a sua maneira de estar no mundo. Então é a mesma Igreja, não muda o que é essencial da Igreja, quer dizer, a comunidade, a palavra de Deus, é a parte do culto, o serviço aos mais necessitados e é missionária. Tudo isso em nome da Igreja, e no caso da Comunidade de Base, lá onde a Igreja ordinariamente, sistematicamente, estruturalmente não está chegando hoje.
Adital – Pode-se dizer que a ação de Jesus Cristo começou bem na periferia da humanidade. Nazaré, quando Jesus fez o grande anúncio do Reino, era um povoado de 200, 300 habitantes. Lá no fim do mundo para anunciar a missão do Filho de Deus. Então nesse sentido As CEBs também nasceram na periferia e vivem o processo de ser Igreja?
José Marins – Teologicamente a Igreja, a Comunidade de Base, tem seu ponto de partida no pequeno, no marginal, no distante: a preferência sempre é de Deus. Mas, o seu objetivo, a sua meta, inclui a todos, quer dizer, ninguém está excluído, mesmo que o ponto de partida seja com os pequenos e os humildes. Na proposta bíblica, o maior anúncio da história humana Jesus veio fazê-lo em Nazaré. Lucas, no capítulo 4, versículo 16 a 22, diz que ele esteve com João Batista e quando João Batista foi eliminado, Jesus vem para a Galiléia e da Galiléia vem a Nazaré, um povoado não importante, que não aparecia nos livros da Bíblia, só depois de Jesus. Então Jesus faz esse anúncio que é a proclamação do Reino. Esse é o ponto de partida. Mas essa proclamação ela é universal, ela parte do pequeno, mas se abre e não exclui a ninguém.
Adital – Fala-se muito que as CEBs são um processo onde nos construímos, como cristãos, como Igreja. O processo é o contrário da igreja parada, que se repete, que é uma rotina. As CEBs têm essa dinâmica dentro de si e dentro das pessoas.
Teolide Maria Trevisan- Eu diria o seguinte: que no caminhar das comunidades, a gente sempre procura colocar a meta. Para que existe a Igreja? A Igreja existe para ajudar as pessoas a encontrar-se com o reinado de Deus. Então esse é um ponto muito novo na vida da Igreja de base, a meta não é constituir uma Igreja linda, bonita, para colocar-se numa vitrine, a meta é ser sujeito corresponsável, como comunidades de Jesus que conhecem e realizam esse reinado de Deus, que é uma proposta para a humanidade.
Esse não é um caminho pré-determinado. Cada passo é um caminhar, é um processo. Muitas vezes dizemos para o povo “a gente sendo e fazendo Igreja”: não somos uma Igreja acabada, para por na vitrine, mas a gente que tem uma meta e vai se constituindo. Toda a essencialidade da Igreja está na proposta, mas na vida da comunidade, ela vai acontecendo progressivamente. Muitas vezes aparece forte o comunitário e o serviço aos pobres e não está tão forte a missão. Muitas vezes, a missão, ou a presença na realidade está clara, está bem definida e a comunidade assumiu, mas a palavra ainda não entrou o suficiente. Outras vezes, a palavra já é assumida, lida e relacionada com a vida, e não está clara a consciência de que nós somos Igreja para o nosso entorno e não só para nós.
Então realmente é o que tu disseste: ela é um caminho para constituir o nível menor da Igreja aí onde o povo se joga a vida, onde ele luta, onde ele sofre, onde ele se alegra, onde ele pode ser sujeito nessa dimensão que estamos falando.
José Marins – Nós usamos três palavras para definir esse caminhar da comunidade: ela é um nível de Igreja, ela é um modelo de Igreja e ela é um processo. Analisando essa última palavra ‘processo’, quer dizer é diferente de um evento. Evento é um acontecimento que praticamente termina com ele mesmo. A Comunidade de Base é formada de eventos que se sucedem formando um processo. Processo tem altos e baixos. Quer dizer, a Comunidade de Base tem limitações, tem falhas e também tem acertos, talvez o grande desafio para quem trabalha com Comunidade de Base é não deixar de fazer avaliações e descobrir aonde a gente está falhando e quando um modelo histórico já tem que ser superado, não confundir um modelo histórico com o fundamental da fé. Dentro desse processo a gente, como as Comunidades de Base, não tem cartilha, mas tem a referência do Evangelho. As CEBs também cometem erros, e avaliando os seus erros, a gente aprende que é a maneira como o povo simples aprende: avaliando os seus próprios erros e corrigindo-os. Por isso, a Comunidade de Base sempre cai, levanta, mas continua.
Teolide Maria Trevisan- Não é uma rampa, mas é uma escada, e eu gostaria de enfatizar essa palavra ‘processo’. Ela cria dificuldade para que a Igreja instituição veja que este grupo pequeno de dez, doze pessoas é a representação primeira, oficial da Igreja no lugar, ainda que não tenha na sua experiência cotidiana tudo que significa ser a Igreja de Jesus. Esse é um ponto muito delicado. Difícil um sacerdote, um bispo acreditar e aceitar que aquele grupo, aquela comunidade pequena representa oficialmente a Igreja naquele bairro, naquela vizinhança. É muito difícil porque ele analisa a Igreja não a partir do conceito que a gente tem de Igreja, mas do nível da paróquia.
José Marins – Talvez aí eu colocaria que representar a Igreja não é levar um documento assinado pela Cúria Episcopal, mas é colocar os valores do Evangelho naquela realidade e naquela circunstância. No momento que coloco os valores de Jesus e do Evangelho, estou representando a Igreja, que representa Jesus.
Adital – Anos atrás, no Brasil havia 80 mil CEBs. Foi um tempo forte em que as comunidades conduziam as lutas populares junto com outras entidades e tinham um discurso de mudança social, de estruturas novas, de superação das injustiças para criar uma sociedade mais fraterna, mais solidária. Hoje, a sociedade cresceu e temos grupos, movimentos e estruturas que trabalham para uma sociedade mais parecida com o Reino de Deus. As CEBs devem ainda estar com os indignados e os lutadores para renovar o mundo ou já passou esse tempo?
José Marins – Eu creio que todas as coisas têm um lado certo e um lado errado e a gente tem que, constantemente, revisar. O que a Comunidade tem que fazer não é substituir uma ONG ou um partido político, mas isso também não é deixar de profeticamente denunciar ou convocar uma mudança daquilo que é injusto. Às vezes a urgência de algo que não está bem, dá a impressão que a comunidade só faz isso. A gente tem que ter o cuidado de dizer: “Ela faz isso, mas não é somente isso”. Nem está substituindo o povo, a cidadania no que eles devem assumir. A Igreja não vai substituir aquilo que o povo, por sua responsabilidade, deve fazer.
Por isso se as Comunidades diminuíram ou aumentaram para nós não é critério. O critério é se elas são autênticas, porque nunca a questão do número vai ser, mesmo para a Igreja, um critério decisivo. Ela é “fermento”, o fermento não tem que ter o mesmo tamanho da massa e o pão não fica melhor porque a gente aumentou o peso do fermento. Então a preocupação nossa é que: onde ela se manifeste seja coerente com os valores fundamentais que orientam a sua vida, e não substitua a sociedade, senão nós voltamos ao método da cristandade, quando a Igreja, politicamente, tentou substituir a sociedade e pôs na cabeça do Papa três coroas.
Teolide Maria Trevisan- Creio que o maior desafio que a gente tem hoje com as comunidades, não só aqui no Brasil, é a gente ser capaz de somar esforços com os diferentes de nós, mas que têm um rumo e uma meta comum. Devemos nos articular com as pastorais especializadas da rua, dos direitos da mulher, do direito à terra, da ecologia, as mais diversas frentes pastorais ou civis, que estão buscando criar uma sociedade distinta, ‘um mundo diferente é possível’. Muitas comunidades resistem a essa articulação, ou dificultam porque num primeiro momento elas foram protagonistas. Quem convocou, quem ajudou o cooperativismo a organizar o povo foram as comunidades, certo? Mas depois apareceram outros sujeitos porque mudou a conjuntura social, política, etc. A Comunidade queria ser a protagonista de tudo.
Outra coisa, a Comunidade em certos lugares encontra resistência da Igreja oficial que põe muitos porquês e não ajuda. Então muitas delas acharam que o papel delas era resistir. Hoje em dia, a gente diz: “Olha, será que o nosso objetivo é resistir ou é preocuparmo-nos com a incidência da comunidade?”. Tem que passar da resistência para ações de incidência. Qual é a diferença que uma CEBs coloca num bairro, numa vizinhança? Não diminui o compromisso social, é o jeito de agir que está mudando porque hoje em dia há muitas forças que estão comprometidas e estão buscando o mesmo que nós sem ter a mesma fé concreta em Jesus.
José Marins – Em qualquer momento quando a Igreja faz uma denúncia, profeticamente ela nunca se deixa envolver pela amargura ou pela agressividade. É como a própria proposta de Jesus, que ao mudar algo que está errado, está criando uma nova experiência, esperança, está abrindo um espaço para que a gente descubra coisas que não havia descoberto antes. De tal maneira que a Igreja não é um grupo de pessoas mal humoradas, que nunca está contente com nada. Ela em função de um projeto muito grande, muito realizador, faz as correções ou as denúncias que são necessárias. Isso não faz com que a Igreja se reduza a um único aspecto da vida humana, ela assume a globalidade.
Não pode se dizer que a Igreja porque disse uma palavra que tem consequências políticas ela só é politicona ou politiqueira. Ela vai também, ao lado disso, falar de oração, ela vai falar de caridade, e de todos os aspectos que no momento histórico tem a maior urgência.
Teolide Maria Trevisan- A gente sente que a comunidade profética lá no bairro ou no lugar onde está, ela cria alternativas. A denúncia com a palavra é entendida e existe, mas o profetismo hoje é quando nós somos gestores de uma alternativa de Igreja, alternativa de mundo e somos capazes de somar esforços com outros.
José Marins – Vamos ver realisticamente a proporção da comunidade. Ela é sempre um grupo pequeno ela não está falando para os EUA, nem para a Rússia, nem para a Indonésia, ela está falando, em primeiro lugar, para o imediato, onde as pessoas se movem.
Adital – Articulando, porém, tantas experiências nós chegamos até a promover, claro, com outras forças sociais, novos projetos políticos na América Latina. O pobre até que recebe os favores sempre é aceito, mas quando o excluído chega com projetos alternativos, aí se impõem ditaduras e repressão que só caem quando os projetos alternativos tenham mais força política. Vocês que conhecem as CEBs de outros países, que panorama podem descrever com relação a essa experiência nova de Igreja?
José Marins – Creio que o Brasil foi o país onde apareceu mais claramente a força do pequeno, talvez pela preparação que Paulo Freire havia criado com o método novo de educação e participação. Além do Brasil não há situações homogêneas. Quase em qualquer país a gente vai encontrar caminhos novos que estão abrindo horizontes. Às vezes nem tem o rótulo da Comunidade de Base. De fato, não interessa o rótulo, interessa o conteúdo. Às vezes não são as comunidades que vão depois receber a gratidão por aquilo que se conseguiu, mas é o povo na sua luta, no seu caminhar. Então há lugares no México onde se fez, por exemplo, a diocese de Monsenhor Ruiz, onde as comunidades haviam trabalhado no nível dos indígenas.
Aí houve um caminhar de Igreja que entrou como a Igreja diocesana que ganhou mais o prestígio de estar bem. Outro lugar como Cidade Gusmán, onde se criou um modelo de alternativa de Igreja, é uma diocese no meio de um México, que é grande. Assim, nós podíamos passar quase cada país mostrando que houve momentos e que houve áreas, se falamos das Comunidades de Base.
Teolide Maria Trevisan- Creio que na maioria dos países as comunidades são pequenos grupos, mas vivos. Por exemplo, em Cajamarca, na Argentina, foram as comunidades que garantiram toda a luta em torno das minas a céu aberto. E lutaram, e lutaram, mas se elas ficassem só e não conseguissem outros sujeitos, elas seriam anuladas, porque são grupos pequenos, não têm recursos econômicos, não têm recursos de comunicação, de locomover-se. Então o que a gente sente hoje é que as Comunidades se comprometem com os desafios da globalização, como a ecologia, mas elas são eficazes só criando um processo conjunto com outras frentes, frentes ecumênicas, frentes religiosas, frentes cívicas.
Acho que na maioria dos países, fora México e Argentina, os grupos de CEBs são poucos. Veja a Nicarágua: lá, o único trabalho é com Arnaldo Zenteno que garante uma abertura e uma inserção da igreja na realidade; as CEBs marcam presença nos problemas de fronteira, como no Haiti, com a Marta Boiocchi. Os companheiros haitianos lutam e realizam o que foi dito no 12º Encontro Intereclesial da CEBs: “Gente pequena, fazendo coisas pequenas, em lugares pequenos, consegue grandes mudanças”. Nós, pessoalmente, acrescentamos: “Gente pequena, em lugares pequenos, ARTICULADOS, esse ‘articulados’ consegue mudanças, sozinhas não, comunidades sozinhas não”.
Adital – Hoje, uma dificuldade que a Igreja tem é encontrar a juventude. Sobretudo falando das Comunidades Eclesiais de Base, o que é que elas podem oferecer aos jovens hoje?
José Marins – Uma primeira aproximação dessa questão deve nos obrigar a perguntar-se se nós não estamos querendo superproteger aos jovens, como às vezes acontece nas famílias de pais superprotetores que não deixam que eles sejam desafiados pelo atual momento histórico. E de fato a Igreja não deve se preocupar sobre o que ela vai dar aos jovens. Para isso tem outras instâncias como a família, a sociedade… A igreja tem que transmitir o valor de uma fé. Então, a grande pergunta é outra: “Um jovem que é batizado e que tem fé, o que ele pode dar à Igreja. Qual o projeto de vida que ele tem que ajuda a colaborar no seguimento de Jesus?” A questão é convidar os jovens no seguimento de Jesus.
Eu repeti nesses dias, no nosso encontro, a história daquele jovem que foi a um grupo de militância política extrema e cada dia falavam pra ele: ‘Você está aqui para pôr em risco a sua vida, mas você vai construir um país diferente, você não vai só substituir os poderosos e sentar no lugar deles, você vai começar um país novo’. Depois ele foi a uma paróquia, porque ele era católico, e ficou com medo, porque aquele grupo anterior era marxista, e lá na paróquia ofereceram pro jovem jogar ping-pong e fazer um passeio no fim de semana no lago pra comer um churrasquinho ao som das ondas.
Se nós reduzimos o contato do jovem a uma superproteção light, nós vamos criar uma geração de medíocres. A Igreja justamente ajuda os jovens, quando ela evita que eles sejam medíocres e possam desafiar a sua capacidade criadora; o seu serviço, nesse momento, é ter uma grande paixão, um grande sonho. Não vamos fazer comunidade de jovens, mas vamos pensar os jovens na Comunidade Eclesial, que são o fermento e a força do espírito criador para essa época.
Teolide Maria Trevisan- Gostaria de transmitir o que nós escutamos em El Salvador, em comunidades de camponeses. Havia alguém que dizia assim: “O que adianta lutar, lutar, contra o que está acontecendo no nosso país, se você não vai desfrutar disso?”. Um camponês respondeu: ”Eu vou lutar até o fim porque eu tenho certeza que um dia El Salvador vai ser diferente”. E com aquela convicção que um dia faria seu povo viver em situações de igualdade, de trabalho para todos. Eu gostaria que a gente pudesse transmitir essa mística, essa espiritualidade de convencimento de que eu sou sujeito não porque vou usufruir disso, mas eu quero colaborar porque sei que isso é uma urgência pro meu país, pro meu mundo, pra minha realidade.
José Marins – Nós, às vezes, estamos muito contaminados pela mentalidade da sociedade de consumo. Só vou investir em energia, em dinheiro, tempo, em algo que me vai retribuir. Essa é uma perspectiva muito personalista, individualista e egoísta. A Igreja é aquela comunidade como o crucificado. Não importa se eu não vejo, mas alguém da minha comunidade, algum seguidor meu vai colocar esta experiência para milhões de outras pessoas. É aquela história do camponês que estava trabalhando, plantando uma árvore, e alguém disse: “Mas isso aí só vai dar frutos daqui a trinta anos, e você já está com sessenta.” Ele disse: “Não importa quem vai colher o fruto, sei que alguém, um dia, irá gozar disso.” Então, se só dá fruto daqui a trinta anos, não posso perder tempo, tenho que plantar logo.
Adital – Teo e Marins, são mais de 40 anos que vocês trabalham com as CEBs. Não estão cansados?
Teolide Maria Trevisan- Olha, algumas vezes a gente cansa não de trabalhar com as CEBs. Nossa rotina de arrumar mala, de chegar lá e não ter água pra tomar banho, ficar uma semana sem lavar roupa, isso acontece com quem se move no mundo pobre, mas nós podemos dizer como no Evangelho de João: nós tocamos com nossas mãos, nos vimos com os nossos olhos, a grandeza de um investimento num povo simples, num povo pobre. Então a gente tem um convencimento tão grande que eu, por exemplo, já tenho 76 anos de idade, fragilizada, vejo que, quando estou com o povo, parece que ele me energiza. Então a gente não cansa. Cansa, muitas vezes, a pressão grande da Igreja, isso sim cansa, e até penso: “Será que eu estou no caminho certo, será que isso vale a pena?”. A gente tem esses momentos de dúvida, mas, até agora, eu não me sentei numa cadeira.
José Marins – Queria dizer que você já fez essa experiência na sua própria vida, é nossa experiência. Nós recebemos muito mais do que aquilo que damos, e esse negócio de cada semana, cada quinze dias estar em um país diferente, numa realidade diferente, para nós tem sido uma constante benção e carinho de Deus, porque a gente encontra tantos valores e tanto entusiasmo que a gente não tem vontade de voltar para trás. Já estou fazendo 56 anos de ordenação, e hoje eu tenho mais entusiasmo do que no dia da minha ordenação. Eu acho que a experiência de encontrar, em cada momento, em cada área, surpresas do reino, nos transformam. Elas podem ter o nome de Lino, de Ermanno, elas estão acontecendo na nossa vida, e a gente, então se sente muito abençoado também pelos desafios e pelas dificuldades, muito mais pela alegria desse trabalho.
Entrevista publicada em https://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cat=82&dt=&cod=63971