Nós sabemos que nosso tempo está profundamente marcado por diversas enfermidades, sejam físicas ou psíquicas todas têm variações de gravidades e imprimem alguma natureza de sofrimento ao ser humano. Diante disto o autoconhecimento se coloca como uma ferramenta de feliz recurso para lidar com o sofrimento humano, seja por trazer sobre ele melhor compreensão, seja por trazer-nos a consciência de muitos sofrimentos evitáveis. Sim, evitáveis, pois muitos sofrimentos humanos, inclusive psíquicos, podem ser evitados, e o autoconhecimento é essencial neste empreendimento. No presente texto o que pretendemos é expor, suscintamente, a ferramenta do eneagrama como meio de integração das compulsões humanas, que no geral são grande fonte de sofrimento em nossas relações.
O sofrimento no grego é dito também com a palavra pathos, que traduzimos comumente por paixão. Essas paixões eram vistas pelos filósofos com suspeita, pois segundo eles, a paixão suspende o uso da razão e arrasta a pessoa aos vícios, aos maus hábitos e a padrões de comportamentos escravizados pelos desejos, pelos instintos, assim, o pathos grego não se configura propriamente como sofrimento físico, mas também como origem de sofrimento psíquico, assim, as paixões ordenavam uma vida segundo os apetites: sexo, guerra, comida, bebidas, relações agressivas…, enfim, o que os gregos, de certo modo, chamavam de paixões, o eneagrama chama de compulsões.
O eneagrama é uma sabedoria de origem distinta da grega. Ele surge no médio oriente, cerca de dois mil anos antes de Cristo. Seu começo está na sabedoria popular de comunidades de tradição oral. O conhecimento dessa sabedoria nos chegou por meio de George Ivanovich Gurdjieff (1866-1946), que em suas viagens pela Rússia e pelo Afeganistão aproximou sua teoria de autoconhecimento com essa tradição antiga, e passou a ensinar aos seus pupilos; mas somente com Oscar Ichazo e Claudio Naranjo o eneagrama aproximou-se de fato do mundo ocidental, pois Naranjo começou a estabelecer grupos de estudos com cursos no Chile e nos Estados Unidos, depois ao longo de sua vida passou a aproximar o eneagrama da psicologia moderna, especialmente a teoria do desenvolvimento em Freud.
O eneagrama como teoria da personalidade se organiza no que propriamente diz o nome: nove tipos, isto é, por meio de nove tipos de personalidades ele possibilita o autoconhecimento humano, pois apesar de nove tipos, cada sujeito está centrado propriamente em um tipo, numa caracterização bem peculiar e, ao mesmo tempo, com padrões gerais de comportamento, o que permite ao eneagrama contribuir com a consciência do sujeito, num processo de integração das compulsões. A integração consiste numa tomada de consciência das compulsões por meio da auto-observação, proporcionando o cuidado sereno que faz o sujeito escapar ao domínio dos vícios comportamentais, isto é, das paixões.
Os nove tipos estão ligados inicialmente às compulsões: a primeira tipologia se comporta na busca da perfeição, possui um “juiz interior” que direciona seu olhar aos “erros” que existem no mundo. Sua pretensão compulsiva é reparar esses “erros” o que desenvolve uma raiva ressentida; a segunda tipologia é caracterizada pelo esquecimento de si e a lembrança dos outros. Comumente é chamada de “ajudador”, porque frequentemente se dispõe a contribuir com outras pessoas, é “aquela pessoa com a qual se pode contar”. O elemento de compulsão é exatamente o esquecimento das próprias necessidades e constante espera de reconhecimento externo, causando ansiedade e até um ativismo exaustivo; a terceira tipologia tem como traço principal a percepção de si como “pessoa bem sucedida”, pois entende o mundo como o espaço para aqueles que têm “sucesso”, assim, o seu empenho no mundo é operacional, esquecendo muitas vezes as questões ligadas aos afetos, à convivência, pois sua energia está direcionada ao sucesso no ambiente social. Isso leva essa tipologia a ter dificuldades para lidar com fracassos, sobretudo no mundo profissional, causando diversas reações, uma delas é a negação, pelo mecanismo da mentira; o seu padrão de comportamento se rege pela ansiedade, numa pressa em realizar projetos de sucesso.
O quarto tipo eneagramico possui uma sensação de abandono, seu padrão comportamental se rege pela ansiedade em preencher tal sensação. Para ele sua vida é extraordinária, com uma aptidão para a sensibilidade, seja com as artes, seja com o sofrimento do outro, isto é, o sofrimento é uma matéria na qual tem propriedade, por isso se sensibiliza facilmente com o sofrimento alheio. Sua compulsão se desenvolve por meio de uma aguda ansiedade. A pessoa com predominância da tipologia cinco é reconhecida como observadora, pois seu padrão de comportamento é observar o mundo ao seu redor, normalmente sem se envolver nele, muitas vezes são de poucas palavras e ainda menos de expressar afetos, sua vida está centrada na racionalidade, pois antes de sentir, o que importa é entender as coisas, as relações, as pessoas. Sua compulsão propriamente é o “esfriamento” afetivo. A sexta tipologia também é observadora, geralmente as pessoas centradas neste tipo observam o mundo tanto quanto as pessoas centradas no cinco, contudo, a observação não é direcionada para um saber intelectivo, mas numa investigação acerca dos perigos que possam existir no entorno, seja por meio de outras pessoas, seja por meio de objetos que causem “perigo”. O sentimento predominante tanto para o cinco como para o seis é o medo, ao cinco, o medo de perder a privacidade, ao seis, o medo da reação de superiores (autoridades).
A tipologia sete se expressa como uma pessoa extrovertida, divertida e contagiante, na verdade, teve que procurar um modo de encarar as realidades da vida, sobretudo a dor, daí ele escolheu a diversão e ser uma pessoa com muitos projetos ao mesmo tempo, “mas sem perder o humor”. Sua compulsão é a fuga da dor, o que está regido por um padrão de comportamento demasiado flutuante, isto é, inconstante, se um projeto corre o perigo de dar errado, logo é abandonado, sobretudo se vai expô-lo sofrimento. Sua vida está mais no futuro que no presente, por meio de uma fértil imaginação de realizações futuras. A tipologia oito se caracteriza indiscutivelmente por uma raiva explosiva, sua compulsão são as reações imediatas, isto é, irrefletidas. No geral pensa estar estabelecendo justiça, pois as “pessoas justas são diretas”, assim, suas relações são regidas por uma tensão entre o justo e injusto. Para ele, o mundo é dominado pelos mais fortes, no entanto, o que realmente existe é a grande força do predomínio da raiva, levando a própria pessoa a se sentir refém dessas reações, muitas vezes desproporcionais. O tipo nove também possui como traço principal o sentimento da raiva, contudo é a raiva adormecida, pois para sobreviver às intempéries da vida ele entendeu que fosse melhor a indolência, isto é, não se envolver, não gastar energia com o mundo, pois o mundo lhe esqueceu, portanto, o nove compulsivamente resolveu poupar energia, seja consigo, seja com os demais. Sua reação com o mundo é de desinteresse, o que o faz assumir as coisas num modo desligado, isto é, faz as tarefas, mas sem pertença, no entanto executa bem. No geral seu “vício” é dormir.
Acima estão descritos, brevemente, os nove tipos do eneagrama, por meio deles a pessoa é conduzida ao autoconhecimento, ferramenta que seguramente auxilia a sofrer menos, a lidar melhor com as expectativas e frustrações. O caminho eneagramico se desenvolve, no geral, em três etapas: na primeira há a “descoberta” do tipo predominante na pessoa; na segunda etapa são apresentadas ferramentas para a integração, os modos de auto-observação; na terceira etapa a pessoa é conduzida por um percurso que alia autoconhecimento e espiritualidade, sobretudo por meio da prática da meditação.
Iniciamos este texto falando do sofrimento humano, e que há sofrimentos evitáveis, e encerramos certos disto, e tendo o autoconhecimento como um frutuoso caminho para evitar muitos sofrimentos, inserindo aqui o eneagrama como uma das possibilidades para o autoconhecimento.
Pe. Abimael F. do Nascimento, msc
Pároco da Paróquia de Nossa Senhora do Sagrado Coração
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