O amor de si mesmo aqui está reportando a uma expressão da obra “Ética a Nicômaco” de Aristóteles, cerca de 300 anos antes de Cristo. Nessa obra, Aristóteles expõe vários princípios éticos, vários princípios que guiam a nossa existência; contexto no qual ele expõe a felicidade como o fim da ação humana, isto é, o ser humano virtuoso busca a felicidade. Essa felicidade buscada não realiza somente uma pessoa, mas a polis, a comunidade, a sociedade, pois o mesmo Aristóteles entende que o ser humano se realiza em comunidade, em sociedade, na polis. Pode-se pois perguntar: o que tem isso a ver com a Ética Cristã? – Uma primeira apreciação é: o cristão busca a felicidade; uma segunda é: o cristão encontra a felicidade como Igreja, como comunidade.
No início de sua argumentação, Aristóteles reconhece que o amor a si mesmo é censurável, pois mais parece uma busca de benefícios pessoais, e de fato, há aquele tipo de amor a si mesmo que se caracteriza por egoísmo, o que o filósofo chama de philiautós, egoísta. Este tipo de amor por si mesmo se caracteriza pela fácil adesão às paixões vãs. Normalmente, o egoísta se deixa envolver por coisas que enaltecem seu ego ou que o fazem parecer superior aos demais, contudo, nem sempre essas coisas lhe são boas. Por isso, a vida egoísta, segundo o filósofo, é uma vida medíocre, pois busca benefícios para si, mas se perde nas paixões, fazendo o mal a si e aos demais, alguns exemplos poderiam ser: alcoolismo, ambição desmedida, desejo intenso pela fama… Mas há aquele amor por si que enobrece a pessoa que se ama, e ajuda aos semelhantes.
O amor por si, que aqui vamos chamar de virtuoso, é aquele que sendo “amante de si mesmo; de fato, assim poderá beneficiar a si mesmo mediante ações nobres [boas] quanto auxiliar aos seus semelhantes”. O virtuoso, ama a si mesmo, visto que ama primeiro o que lhe é mais próximo, o que tem que cuidar primeiro, o que tem que zelar antes de tudo. Deste modo, tendo a capacidade de cuidar de si mesmo, terá também a disposição de ações boas para com os outros, uma vez que não se deixa conduzir pelas paixões (vãs).
O cuidar de si mesmo, como princípio para cuidar de outros, como diz o filósofo, é semelhante a regra de ouro da ética, e se encontra nos escritos da vida de Jesus, quando ele diz: “Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes façam; pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12). A ética cristã passa por esta regra de ouro, comum também ao mundo grego e a muitas propostas éticas modernas.
Se cada um de nós buscamos a felicidade pessoal, que se dá na vida em comunidade, então a felicidade minha passa pela felicidade do outro. A única possibilidade de isso não acontecer por tal caminho é me faltar o amor virtuoso por mim, ou seja, é o ego ter se perdido nas paixões, é um embriagar-se pelo dinheiro, tão em voga na classe política ou pelo poder. Mas restam também pequenas paixões vãs, que afetam aqueles que buscam esse dinheiro e poder pela dor próxima e imediata, isto sim, pois muitos políticos que buscam poder e dinheiro estão longe da dor humana, longe das filas dos hospitais, longe dos barracos onde muitos “vivem”, longe da criança que chora à noite por não ter o que comer. Todavia, não bastasse esse mal, há também aqueles que vitimados, fazem vítimas; são aquelas pessoas que vão pelo mundo da criminalidade. Possuem um amor próprio danoso, que desenvolve uma frieza diante do mal, da dor do outro que cai no chão, surge uma indiferença à dor das mães e dos filhos. A morte torna-se troféu, ao invés de drama. É uma ética sem o outro, sem a dor do outro em ambos os casos. Aqui, a máxima de Jesus não encontra eco, o amor por si virtuoso de Aristóteles não passa de uma teoria em desuso ou desconhecida.
No amor por si, não virtuoso, o que falta mesmo é o amor por si. Perdeu-se a esperança, perdeu-se a sensibilidade para ver o quão a vida é bela, o quanto vale viver, o quanto é valioso ter amigos, ter família, ter dignidade! Falta o amor por si! O que Jesus disse é exatamente isso, por eu me amar, somente buscarei o bem para mim, é o que devo buscar também para o outro. Isso diz Aristóteles no seu tempo “todas as expressões de amor pelos outros são um prolongamento da consideração por si mesmo”.
A ética cristã, assumindo a máxima: “não faça aos outros aquilo que não quer que façam com você”! Revela-se uma ética do próprio eu que busca a felicidade, isto é, o eu se felicita no bem e ao evitar o mal, de modo que a ética cristã passa pela busca do bem a mim que se prolonga para o outro, pois o não fazer ou desejar o mal a mim, é também não fazer e não desejar o mal ao outro.
Então, por que em nossa sociedade cristã há tanto mal?
A resposta é simples: nós esquecemos o princípio ético de Jesus, esquecemos a regra de ouro, prestamos culto a Deus, mas educamos para o mal. Houve uma dissociação entre o que se crê e os costumes que se cultivam. Nossa sociedade não se alegra no bem que faz, mas no proveito que pode tirar no “bem que parece fazer”, ou no mal que faz.
Muitos cristãos na política e muitos jovens batizados se tornaram philiautós, egoístas, amam a si mesmos a partir da dor do outro. É um amor sem virtude, é um amor enganoso, ou seja, não é amor, é na verdade uma paixão, uma corrupção do amor.
Como mudar o rumo disso?
É preciso reaprender e ensinar a regra de ouro: “não faças aos outros aquilo que não desejas que façam contigo”. Isso é Evangelho, si amar para amar ao próximo. Se Deus não fosse amor, jamais levantaria uma palha para nos perdoar e nos salvar. Deus ama seu próprio nome (Sl 25; Sl 143), por isso pode perdoar, fazer o bem. Pois o amor faz bem aquilo que faz (Santo Agostinho).
Portanto, cada um de nós buscamos a felicidade, aquela que se perpetuará em Deus, no Reino dos Céus. Essa felicidade a vivemos e promovemos como Ecclesia, comunidade. Ela passa pelo amor de si mesmo que nos leva a querer e promover o bem para nós e amar ao próximo.
Pe. Abimael Nascimento, msc
Pároco da Paróquia Nossa Senhora do Sagrado Coração de Jesus, em Aerolândia, Fortaleza-CE
Uma resposta
Texto assim nos ajudam a entender um pouco a essência do homem em seu estado espiritual, a vida em comunidade religiosa passa por vários conflitos, onde o mais dificíel é o entendimento do "EU", que as vezes fica no inconsciente do Ser Espiritual, onde todos ali acreditam que estão seguindo o deixado pelo sr. Jesus, que só um aprofundamento na vida comunitária e do seu inconsciente "EU", poderá se guiar pelos verdadeiros caminhos da comunhão de comunidade cristã em sua principal essência. “não faças aos outros aquilo que não desejas que façam contigo”.