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O ofício composto por Santo Tomás e promulgado pela bula Transiturus é chamado Sacerdos in aeternum (“Sacerdote eternamente”).
5 maio 2020
Em 1264, o Papa Urbano IV instituiu a festa de Corpus Christi com a Bula Transiturus de hoc mundo (“Passando deste mundo”). Alguns precedentes dessa instituição se encontram na fé eucarística de Santa Juliana de Cornillon, na Bélgica, que contribuiu para difundir um fervoroso amor e adoração à Eucaristia. O referido Papa conheceu a santa enquanto era arquidiácono em Liège (Bélgica).
Com a adoração eucarística própria dessa festa, se propunha “aumentar a fé, avançar na prática da virtude e reparar as ofensas ao Santíssimo Sacramento” a todos os fiéis. O Papa, de modo exemplar, escolheu celebrar a solenidade pela primeira vez na Catedral de Orvieto, na região do Lácio, próximo a Roma, onde morava e onde se conservavam as relíquias do milagre eucarístico de Bolsena.
Tomás de Aquino, o exímio teólogo, acompanhava o Papa e a ele foi confiada a missão de compor os textos do ofício litúrgico para a nova festa em honra ao Santíssimo Sacramento.
O ofício composto por Santo Tomás e promulgado pela bula Transiturus é chamado Sacerdos in aeternum (“Sacerdote eternamente”). A sua parte poética consiste nos seguintes hinos (tomando como referência a atual disposição da Liturgia das Horas):
- Pange, lingua (“Vamos todos louvar juntos”): hino das Vésperas;
- Sacris solemniis iuncta sint gaudia (“A Santa Festa alegre celebremos”): hino do Ofício das leituras;
- Verbum supernum prodiens (“Eis que o Verbo, habitando”): hino das Laudes;
- Lauda Sion salvatorem (“Terra exulta de alegria”): sequência da missa, antes do Evangelho;
- Adoro te, devote: composição que não faz parte do ofício divino, uma composição privada, mas que, segundo a crítica, é “entre todas as composições poéticas de Tomás, certamente a mais feliz”.
A importância pastoral
Antes de aprofundarmos um pouco a teologia dos hinos, é importante colocar em evidência a importância pastoral dessa poesia. Composta em tempos de fortes debates em torno à Eucaristia (por exemplo, a controvérsia de Berengário, que acreditava que Jesus estava presente nas espécies eucarísticas somente espiritualmente), os hinos, com a sua sólida teologia, profunda experiência espiritual e simplicidade de imagens, são uma grande ajuda à fé dos fiéis, que com o canto manifestam o seu amor e devoção ao Santíssimo Sacramento:
“Ao lado do pensador fortíssimo e do distinguidor sutil está também o santo, que ama e, como amante, canta. (…) A espontaneidade do sentimento e a fé cheia de ânimo e a popular precisão da linguagem preenchem as palavras de uma vibração lírica autêntica e colocam o espírito em contato com o Mistério. O dogma se torna harmonia, fé, canto, luz mística”.
Vejamos alguns dos temas mencionados na poesia eucarística do Santo. Usaremos a tradução contida na Liturgia das Horas do Brasil para os hinos do ofício divino; para o hino da sequência, o texto presente nos nossos lecionários; e para o Adoro te, devote usaremos uma tradução métrica publicada no livro do frei Raniero Cantalamessa, “Isto é o meu corpo”, das Edições Loyola (2004-2005).
A base bíblica
As poesias de Tomás fazem frequentemente referência à Bíblia, seja à narração de quando esse sacramento foi instituído: a noite da Última Ceia, às vezes ligando-a com a Encarnação; seja ao Antigo Testamento, no qual o sacrifício de Cristo e a Eucaristia são prefigurados, e estes como cumprimento daquele.
De fato, canta o hino Lauda, Sion: “Era sombra o antigo povo,/ o que é velho cede ao novo:/ foge a noite chega a luz”, o Sacris solemniis: “o pão do céu põe término às figuras” e o Pange, lingua: “o Antigo Testamento/ deu ao Novo o seu lugar”. As imagens veterotestamentárias utilizadas nos hinos são várias: a imolação de Isaac, o cordeiro pascal, o maná dado aos pais.
As referências à Última Ceia estão por toda parte:
- Pange, lingua: “Observando a lei mosaica,/ se reuniu com os irmãos./ Era noite. Despedida./ Numa ceia: refeição./ Deu-se aos doze em alimento, pelas suas próprias mãos”;
- Sacris solemniis: “Da última Ceia a noite recordamos,/ em que Jesus se deu, Cordeiro e Pão;/ conforme as leis entregues aos antigos,/ ele também se entrega a seus irmãos”;
- Verbum supernum: “Conhecendo o Senhor quem iria/ entregá-lo na mão do homicida,/ quis aos doze entregar-se primeiro,/ qual perfeito alimento da vida”;
- Lauda Sion: “O que o Cristo fez na ceia,/ manda à Igreja que o rodeia/ repeti-lo até voltar./ Seu preceito conhecemos:/ pão e vinho consagremos/ para nossa salvação”.
A teologia eucarística
É muito belo contemplar como a doutrina eucarística de Santo Tomás se faz presente de modo poético nos seus hinos: Coloca em evidência que, nesse sacramento, se celebra a morte de Cristo: “Ó memorial da morte do Senhor,/ pão vivo que dás vida ao homem” (Adoro te); Canta-se, prolongadamente o mistério da transubstanciação e as suas implicações no hino Lauda, Sion:
“Faz-se carne o pão de trigo,/ faz-se sangue o vinho amigo:/ deve-o crer todo cristão./ Se não vês nem compreendes,/ gosto e vista tu transcendes,/ elevado pela fé./ Pão e vinho, eis o que vemos;/ mas ao Cristo é que nós temos/ em tão ínfimos sinais…/ Alimento verdadeiro,/ permanece o Cristo inteiro/ quer no vinho, quer no pão./ É por todos recebido,/ não em parte ou dividido,/ pois inteiro é que se dá!/ Um ou mil comungam dele,/ tanto este quanto aquele:/ multiplica-se o Senhor./ […] Pensa bem: igual comida,/ se ao que é bom enche de vida,/ traz a morte para o mau./ Eis a hóstia dividida…/ Quem hesita, quem duvida?/ Como é toda o autor da vida,/ a partícula também./ Jesus não é atingido:/ o sinal que é partido;/ mas não é diminuído,/ nem se muda o que contém”;
Também no Verbum supernum: “E debaixo das duas espécies/ o seu corpo e seu sangue nos deu”; Precisa ainda que o único ministro ordinário do sacramento eucarístico são os presbíteros: “Instituído estava o sacrifício,/ que aos seus ministros Cristo confiou./ Devem tomá-lo e dá-lo aos seus irmãos,/ seguindo assim as ordens do Senhor” (Sacris solemniis).
A fé
Santo Tomás deixa ainda transparecer de modo muito belo e em vários versos a necessária adesão de fé às palavras de Cristo, a que faz referência esse sacramento. A fé não fere em nada a dignidade da razão. Sem a fé, é impossível chegar à verdade que se esconde por trás daquilo que é atestado pelos sentidos. Biffi comenta essa sola fides (“somente a fé”) do Santo: “Os sentidos julgam e se detém nas aparências: não sabem ir além, não conseguem alcançar, por detrás das espécies, a presença da substância, ou seja, do Corpo e do Sangue de Cristo. […] Por isso se diz que esses se esvaem e falham. A presença real do Senhor é atestada unicamente pela fé, que se põe a escutar a sua Palavra”.
É isso que encontramos no Pange, lingua: “O milagre nós não vemos,/ basta a fé no coração./ […] Venha a fé por suplemento/ os sentidos completar” e “Se não vês nem compreendes,/ gosto e vista tu transcendes,/ elevado pela fé”, no Lauda, Sion. Também no Adoro te é mencionado que “A vista, o tato e o gosto não te alcançam,/ mas só com o ouvir-te firmemente creio./ Creio em tudo o que disse o Filho de Deus,/ nada mais verdadeiro do que esta Palavra da Verdade” (algo belo nessa estrofe é notar que o único sentido que não encontra o seu limite é a audição, exatamente por onde entra a fé, segundo o apóstolo Paulo).
Encerremos aqui nossa “degustação” da beleza da poesia e da teologia eucarísticas presentes nos hinos de Santo Tomás de Aquino. Uma última reflexão: Tomás de Aquino se coloca, ao final de sua vida (período em que os estudiosos consideram que ele compôs o hino Adoro te, que, como foi dito, é o mais belo e profundo de seus hinos) no rastro de tantos outros que o precederam e como mestre de espiritualidade eucarística para tantas gerações que o sucederão, que ensina com as palavras, mas, muito mais, com a sua postura pessoal.
Imprimiu, certamente, nos corações de muitos fiéis o amor eucarístico, seja no coração de clérigos ou religiosos (quando nos recordamos que esses hinos fazem parte do Ofício divino); seja no dos leigos, que fizeram desses versos tomísticos um dos modos de cantar o seu amor e devoção à Eucaristia.
Pe. Edinardo de Oliveira Jr, CCSh
Fonte: Instituto Parresia