Durante o Tríduo Sacro, a liturgia segue os passos do Senhor mais cerradamente ainda do que no tempo da Quaresma. O Tríduo Sacro é um grande drama, uma grande encenação do sofrimento do Senhor. Por isso, tendo representado a Instituição da Ceia na tarde da quinta-feira, a liturgia não voltará a celebrar a Eucaristia até a noite pascal – assim como Jesus não voltou a celebrá-la até que a celebrasse no Reino de Deus (Mt 26,29 e par.). Assim, no dia em que o sacrifício de Cristo está mais central do que nunca, a liturgia não celebra o sacrifício da Missa, mas uma evocação de sua morte, que não deixa de estar em íntima união com a missa de Quinta-feira Santa, já que o pão consagrado ontem é consumido hoje.
A liturgia nos faz sentir, sobretudo, o significado do sofrimento de Cristo, e as duas leituras que preparam a leitura do evangelho são fundamentais para contemplarmos este mistério.
A 1ª leitura apresenta o 4° canto do Servo de Deus (Is 52-53). Neste texto, a jovem Igreja encontrou o fio escondido que a existência de Jesus revelou e levou ao fim: a doação da vida do justo, pela salvação dos irmãos, mesmo dos que o rejeitaram. Como diz a 2ª leitura (Hb 4-5), Jesus participou em tudo de nossa condição humana, menos no pecado. Sua existência não foi alheia à nossa como a de um anjo. Jesus teve de descobrir continuamente, como cada um de nós, o sentido de sua existência, embora a vivesse de modo divino, em contínua união com o Pai. Assim, formado na escola da piedade judaica, ele conheceu a tradição que considerava a salvação como fruto do sofrimento redentor. Mas esta não era a teologia dominante do judaísmo farisaico, que esperava a salvação a partir das instituições, da observância legalista, de algum messias político… Jesus, pelo contrario, reconheceu na sua experiência íntima com Deus, a quem chamamos de Pai, a experiência dos pobres de Deus, do profeta rejeitado e do justo sacrificado pelos seus irmãos, e assumiu-a, em obediência até o fim ao projeto do Pai. E isso que nos ensinam as duas primeiras leituras, com suas expressões humanas e existenciais, que sacodem o nosso cristianismo monofisista(*): “pedidos e súplicas… veemente clamor e lágrimas… embora fosse Filho, aprendeu a obediência pelo sofrimento” (Hb 5,7-8).
Esta cristologia da “quenose” (despojamento) (**) e da verdadeira humanidade de Jesus é pressuposta para compreender a cristologia da glória no relato da Paixão de Jesus segundo João (evangelho). Jo mostra o sofrimento do Cristo fortemente à luz da fé pós-pascal. Mas nem por isso nega a dimensão trágica da experiência humana de Jesus; antes, a supõe e a coloca na luz de sua glória divina. Tal procedimento não teria sentido se a gente não estivesse profundamente convencido da realidade do abismo do sofrimento pelo qual ele passou. Pois é neste abismo que se realiza a revelação da glória de Deus, que é amor incomensurável. Assim, merecem especial atenção, nesta narração, a majestade de Jesus na hora de sua prisão; a ironia em redor do “rei dos judeus”, que Pilatos declara, formalmente, ser Jesus; o sentido do Reino de Jesus; e a cena de sua morte, fonte de Espírito e vida. O Cristo da Paixão segundo João é parecido com aquele Cristo vestido de traje sacerdotal ou real, coroado do diadema imperial, que os artistas do começo da Idade Média colocavam na cruz: é a visão teológica da Cruz Gloriosa, a mesma que domina a segunda parte da celebração da Sexta-feira Santa, a adoração da cruz, em que alterna a lamentação do Cristo rejeitado com a aclamação de sua glória (antífona Hágios ho Theós).
Entre as leituras e a veneração da Cruz gloriosa, pronunciam-se as grandes preces da Igreja, modelo das preces dos fiéis em nossas liturgias. Este rito também se inspira na idéia de que a cruz é a fonte da graça de Deus, da vida da Igreja: do lado aberto do Salvador nasce a Igreja.
A terceira parte da liturgia é o despojado rito de comunhão com o Senhor que nos amou até o fim. Este rito estabelece a unidade da presente celebração com a de ontem, consumindo-se hoje as Santas Espécies consagradas ontem (chamadas “pré-consagradas”). A bênção final tem um texto próprio, evocando a perspectiva da Ressurreição.
A cruz do Senhor e a cruz dos discípulos (Frei Almir Guimarães)
Quase na metade do mês de setembro vivemos a alegria da grande Festa da Exaltação da Cruz do Senhor. A antífona de entrada da Missa, tirada de Romanos, exprime bem o sentido profundo desta comemoração: “A cruz de nosso Senhor Jesus Cristo deve ser a nossa glória: nele está a nossa vida e ressurreição; foi ele que nos salvou e libertou” (Fl 6,14).
Cruz, instrumento de suplício: uma madeira mais longa na vertical e a outra, mais estreita, na horizontal. Castigo para os condenados! Antes de ser cruz, a árvore frondosa era balançada pelo vento e seu verdor encantava os olhos dos passantes. As árvores dos bosques e das florestas é que oferecem a matéria-prima da cruz. Um lenhador derrubou uma ou duas árvores, um entendido em carpintaria fez o encaixe…
Com o desenrolar-se dos fatos da vida de Jesus, as autoridades de Jerusalém chegaram ao consenso de que esse Jesus não podia continuar a viver. Deveria ser sacrificado. Os acontecimentos se precipitam. Ele carrega a cruz, é nela pregado e levantado da terra. Ele é tido como alguém que pratica o mal, um malfeitor. Não convinha que continuasse a viver. Jesus experimenta toda sorte de sentimentos na precipitação dos acontecimentos. Vive dura solidão. Vê-se despojado de suas vestes.
Não tem a quem apelar. O Pai, que a tudo assiste, parece mudo e indiferente. Aquele que havia aprendido a trabalhar com madeira está deitado e preso ao madeiro.
Desde a nossa infância fomos aprendendo que não se pode separar Cristo da cruz. Ele, contorcendo-se de dor, resume no gesto de sua morte toda a sua vida: uma existência dada. Dá sentido ao fato de morrer. Morte na filial obediência e no intuito de dar vida para os outros. Literalmente, ali, na cruz, ele é o grão de trigo que vai ser jogado à terra.
Depois da cruz de Cristo muitos outros crucificados foram assumindo suas cruzes, na esteira do patíbulo da sexta-feira das trevas e da luz. Cristo continua morrendo nos inocentes condenados, nas mulheres abandonas pelos maridos, nas crianças sem pai e sem mãe que vagueiam pelos campos de refugiados de países da África, da Síria, em todos esses que são assaltados e espancados no santuário de suas casas, nos que dão a vida pelos outros.
Assim, exaltamos a Cruz do Senhor e respeitamos todos os que na esteira do Crucificado do Gólgota estão unidos a ele.
Terminamos esta reflexão com parte do Prefácio da Missa que fala de vitória da cruz: “Puseste no lenho da cruz a salvação da humanidade para que a vida ressurgisse de onde a morte viera. E o que vencera na árvore do paraíso, na árvore da cruz fosse vencido”.
(*) Inclinado a substantificar a natureza divina de Cristo, desconsiderando sua encarnação em verdadeira existência humana.
(**) Cf. comentário da missa do dia de Natal.
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan Konings, SJ, Editora Vozes
Fonte: franciscanos.org