Na diocese do Alto Solimões, na Amazônia, o único meio de transporte e comunicação é o rio. Não existem estradas, e as paróquias podem ser definidas como verdadeiras ilhas no meio do mato, distantes entre elas horas ou dias de navegação”, explica frei Paolo Maria Braghini, ministro vice-provincial dos frades Menores Capuchinhos do Amazonas e Roraima – “cacique dos frades” – como costuma explicar aos indígenas da região. A diocese do Alto Solimões, no Norte do Brasil, tem sua sede em Tabatinga, a cerca de 1.200 km de Manaus, AM, (sete dias de barco ou duas horas de avião). Desmembrada da diocese do Amazonas, foi erigida Prefeitura Apostólica em 1910 e elevada à categoria de Prelazia em 1950, tornando-se diocese em 1991. A região conta com uma população de quase 200.000 habitantes em um território de 169.000 km2 organizada em oito paróquias ao longo do rio Solimões. Sete delas correspondem às sedes dos municípios do Alto Solimões: somente Belém do Solimões não é município, mas área indígena demarcada. Segundo frei Paolo, além da realidade urbana em constante crescimento, os missionários atuando lá devem atender inúmeras comunidades ribeirinhas e indígenas, percorrendo distâncias enormes de canoa ou em pequenas voadeiras.
Frei Paolo esteve no mês de novembro em São Paulo, para participar do VII Encontro de Organismos e Instituições Missionárias, onde fez um apelo em favor da missão no Alto Solimões e concedeu entrevista à revista Missões.
O que faz um frade no Alto Solimões?
A resposta correta seria: de tudo! Os frades desde que chegaram em 1909 começaram uma verdadeira e heróica missão. Nos primeiros anos foram inúmeros os que doaram a vida morrendo de febre amarela, beribéri, afogados, quase todos jovens, mas, a heroicidade – acredito – está no fato de nunca desistirem. O desejo de anunciar a Cristo esteve sempre acima de tudo. Quem conhece a Amazônia pode imaginar o que significa passar meses remando em pequenas canoas, subindo os rios no “inferno verde”, cheio de insetos, dia e noite, além do calor úmido e das constantes chuvas. Enfrenta-se tudo isso simplesmente para evangelizar, doar a vida nos sacramentos. A sociedade na região se desenvolveu ao redor dos frades missionários, pois com eles, além de uma pequena igreja, surgiram escolas, hospitais ou postos médicos, serrarias, olarias etc. Por muito tempo enfermeiros, carpinteiros, pedreiros, professores foram auxiliados por missionários, às vezes por irmãs capuchinhas. E hoje os tempos e formas mudaram, mas a essência da missão continua: “ai de mim se não evangelizar!” A evangelização acontece através das paróquias (somente nós capuchinhos somos párocos em cinco das oito existentes): catequese, pastorais, visitas constantes às comunidades ribeirinhas e indígenas de canoa, sem deixar de lutar pelos direitos humanos das crianças, da juventude e das famílias, com inúmeros projetos sociais. Toda vez que somos convidados a assumir uma paróquia, nunca a assumimos como frade sozinho, mas sim em fraternidade, pois como São Francisco viveu, nós também acreditamos que a primeira forma de sermos missionários é testemunhar a beleza da vida evangélica entre irmãos, em fraternidade.
Como surgiu a sua vocação para a Missão além-fronteiras?
Nasci e me criei no norte da Itália, na Lombardia. Aos 19 anos recebi o claríssimo chamado de Cristo para doar a vida aos últimos, sobretudo nos países mais pobres. Então deixei namorada, família, bem-estar, minha amada terra e comecei uma caminhada vocacional com o Pontifício Instituto das Missões ao Exterior – PIME. Gostava muito deles, mas de repente a mão de Deus me levou em Assis onde, sem nenhuma programação, encontrei um frade capuchinho de volta da Amazônia após 20 anos. A paixão foi imediata: vi um homem radical, pobre, apaixonado que em breve me levou a conhecer a beleza de viver a fraternidade! Não hesitei: me formei no Centro Itália e após uma longa e sofrida espera, em 2006 fui enviado para a Amazônia: em Belém do Solimões, única paróquia totalmente indígena do Alto Solimões.
Quais os maiores desafios enfrentados na missão?
Os desafios são muitos, pois a realidade social é extremamente complexa: pelas grandes distâncias que a tornam uma região periférica e abandonada, por ser tríplice fronteira e diocese com a maior presença de Povos Indígenas. Tráfico de drogas, alcoolismo, violência, prostituição são uma triste e cotidiana realidade. Por vezes a presença do Exército e da Polícia Federal (Operação Cobra) produz consequências negativas. A juventude é um dos maiores desafios, pela falta de perspectivas. Muitos se envolvem com álcool e drogas, que resultam em suicídios, violência, prostituição e fuga para as grandes cidades e Manaus. A presença das universidades estadual e federal (UEA, em Tabatinga e UFAM, em Benjamim) está acelerando a grande migração de jovens nestas duas cidades e a Igreja continua ausente no meio deles. Mas, o maior desafio é não desistir diante dos muitos problemas com tão pouco pessoal e recursos. A tentação de abandono da missão é grande! Para a missão entre os indígenas ticuna precisaria abrir um capítulo a parte, mas me limito a salientar que os principais desafios são a aprendizagem da língua, a inculturação e valorização da própria cultura, pois está em processo uma perda de valor por parte dos próprios indígenas, especialmente entre as novas gerações. Neste sentido como frades capuchinhos estamos realmente lutando ao lado deles.
O que significa viver a simplicidade com os povos do Alto Solimões?
Falo principalmente da experiência de vida dos últimos quatro anos com os índios ticuna em Belém do Solimões. Morar com eles significa aprender, e muito! Significa entender e amar o outro, acolhê-lo na sua integralidade, com a sua cultura e língua, neste caso extremamente diferente. Significa se tornar um deles, acreditando que podemos oferecer o dom único que é a Boa Nova de Jesus, mas também saber descobrir que esse dom já está presente neles e em sua cultura e que com eles aprendemos muito. A simplicidade é fruto de uma vida simples e essencial, no contato com a natureza, com o rio onde se toma banho, se lava a roupa, sem energia, sem celulares… mas, com muito desejo de estar juntos!
Que apelo faria à Igreja do Brasil?
O povo (ribeirinhos, indígenas, caboclos, mundo urbano e universitário, jovens, imigrantes) é pobre: poucos passam fome, mas a crise de sentido é quase generalizada! Somente o encontro com o Mestre, Caminho e Vida, pode mudar o futuro deste povo que, até agora, é bastante sombrio! Mas, como podem crer se ninguém anuncia? Precisamos de mais forças: a nossa Igreja é demasiadamente pequena em números de missionários: venham e nos ajudem!
Quais as atitudes e valores que se espera de um missionário?
Antes de tudo, o missionário tem que ter vocação! Nem todos têm vocação missionária além-fronteiras! Quem vai para Amazônia, tem que ter recebido a vocação Ad Gentes, com disponibilidade de deixar para trás a sua cultura (neste sentido saibam que a Amazônia não é como o restante do Brasil!), e viver o sacrifício, impregnado de muita e muita paciência, pois o único que corre aqui é o rio! Nunca chegar com respostas prontas e soluções, mas sim ir para aprender, escutar e, somente depois de um ano, no mínimo, começar a emitir juízo sobre o que vê. A primeira impressão geralmente não é a verdade. Por fim, precisa ter boa saúde e, se trabalhar ao longo dos rios, saber nadar!
Jaime Carlos Patias, imc, é diretor da revista Missões. Publicado na revista Missões, n.01 – Jan-Fev 2011.